Todo mundo está falando em ser AI-first. Mas e se o verdadeiro salto for ser AI-native? Qual a diferença entre esses dois caminhos?
Nos últimos meses, diversas empresas têm se declarado AI-first. Circulam, inclusive, e-mails públicos de CEOs reforçando esse posicionamento. Um exemplo é o manifesto de Tobias Lütke, CEO da Shopify (leia aqui), onde ele afirma que:
“A utilização efetiva de AI agora é um requisito essencial para cada colaborador da Shopify — e isso vai além de desenvolvedores ou analistas.”
Em resumo, o que o manifesto propõe é:
Proficiência em AI como base: Usar AI passou a ser uma expectativa padrão, independentemente da função.
Justificativa para não usar: Colaboradores precisam explicar por que não usar AI antes de solicitar mais recursos (como tempo ou equipe).
AI desde o protótipo: A tecnologia deve estar presente desde o início dos projetos, acelerando aprendizado e entrega.
Responsabilização por uso: O uso de AI passa a influenciar avaliações de desempenho e promoções — inclusive para lideranças.
Esse é o espírito do AI-first mindset, definido pela Forbes como uma abordagem intencional para integrar AI em todos os aspectos da vida profissional e pessoal. Trata-se de priorizar e usar AI como principal interface para tomada de decisão, inovação, comunicação, criatividade e resolução de problemas (fonte).
É uma abordagem poderosa — mas talvez não seja suficiente.
Todo mundo está falando em ser AI-first. Mas e se o verdadeiro salto for ser AI-native? Qual a diferença entre esses dois caminhos?
AI-native é um produto, serviço ou organização cuja proposta de valor, funcionamento e modelo de negócio dependem fundamentalmente de inteligência artificial — desde a concepção.
Enquanto AI-first é sobre pensar em como usar AI para tudo o que precisa ser feito, ser AI-native significa começar com outras perguntas:
Que problemas (ou necessidades) da minha cliente só agora eu consigo resolver (ou atender) porque temos essa nova tecnologia?
E que problemas eu já resolvia antes — mas que, com AI, consigo resolver muito melhor?
Essas perguntas mudam completamente o ponto de partida. Ao invés de adaptar o que já existe para caber na AI, você passa a imaginar soluções que só são possíveis porque a AI existe. Isso é o que diferencia o uso oportunista da AI de uma verdadeira reinvenção de produto.
Quando os smartphones se popularizaram, muitas empresas adotaram a estratégia de mobile-first — priorizando o uso no celular, mas ainda com uma base pensada para o desktop.
Logo depois, surgiram empresas que já nasceram mobile-native. Que pensaram seus produtos, modelos de negócio e experiências desde o início com o celular como plataforma principal. E isso fez toda a diferença.
Veja, por exemplo, a diferença entre empresas como Facebook, Google e LinkedIn — que precisaram adaptar suas experiências para o mobile — e empresas como Instagram e WhatsApp, que já nasceram com o celular como plataforma principal. Facebook, Google e LinkedIn tiveram que fazer um esforço, inicialmente usando a estratégia mobile-first e outras estratégias, incluindo aquisição de empresas mobile-native como, por exemplo, Google adquirindo Android e Facebook adquirindo Instagram e WhatsApp.
Enquanto essas conseguiram se adaptar e hoje são referências no uso do mobile, outras, como o eBay, enfrentaram dificuldades em competir com apps que já nasceram nativamente móveis, como a Shopee, e perderam relevância em mercados-chave. A experiência de uso da Shopee era mais fluida desde o início, o modelo de negócio já se beneficiava das particularidades do mobile, e o crescimento foi impulsionado pelo próprio design nativo para essa plataforma.
Estamos vendo algo semelhante acontecer com a AI. Falar em AI-first é um bom começo. Mas o salto real acontece quando o produto é AI-native, ou seja, quando a AI não é apenas uma prioridade, mas uma fundação.
AI-native é quando o produto só faz sentido com AI no centro. Quando o valor entregue às clientes depende diretamente dessa tecnologia. Quando o modelo de negócio, a proposta de valor e a experiência do usuário já nascem moldados por ela.
É esse tipo de empresa que está começando a surgir agora. E, como aconteceu com o mobile, pode ser difícil para quem não nasceu assim competir no mesmo nível.
Para entender melhor esse novo momento, vale olhar para o que aconteceu com a geração anterior de empresas, as tech-native, que souberam usar a internet como base para disrupção.
Google, Netflix, Amazon, Airbnb, Uber. São empresas que usamos com frequência — e que, cada uma à sua maneira, redesenharam os mercados em que atuam. Elas nasceram com tecnologia no centro da estratégia, como preconizo em meu mais recente livro Transformação digital e cultura de produto: Como colocar a tecnologia no centro da estratégia de sua empresa. E mais: nasceram na era da internet. Por isso, podemos chamá-las de tech-native e, até de forma mais precisa, de internet-native.
A computação existe há décadas. O primeiro computador eletrônico de grande escala e programável, o ENIAC, foi apresentado em 1946. Mas foi só com a popularização da internet que a tecnologia deixou de ser restrita ao backoffice e passou a ser plataforma de disrupção.
As tech-native reinventaram como buscamos informação, como nos locomovemos, como consumimos mídia, como compramos, como viajamos. E as empresas tradicionais tiveram, e continuam tendo, que correr atrás.
Esse movimento está prestes a se repetir com a inteligência artificial.
Assim como houve um antes e depois da internet, começamos agora a ver nascer uma nova geração de empresas: as AI-native. Elas já estão sendo concebidas em um mundo onde AI é parte do dia a dia e, mais do que isso, parte central do produto, da operação e da estratégia.
Essas empresas não estão tentando “adotar AI”. Elas estão sendo construídas em cima da AI, assim como a Netflix foi construída em cima da internet.
E esse impacto pode acontecer nos três tipos de empresa que descrevo no meu livro:
Assim como as tech-native estabeleceram novos padrões para experiência, velocidade e escala, as AI-native estão prestes a redefinir o que significa ser competitivo em muitos setores.
Se você já usou o ChatGPT, então já experimentou um produto AI-native — e teve contato direto com o poder de soluções que têm a inteligência artificial no seu core. Não como um recurso adicional ou uma prioridade de construção (AI-first), mas como um fundamento da experiência, do modelo de negócio e da proposta de valor.
A seguir, veja outros exemplos de produtos que nasceram AI-native — e que mostram como essa tecnologia pode ser usada para resolver problemas concretos de forma inovadora:
Veja alguns exemplos:
Essas ferramentas mostram como a AI já está resolvendo problemas concretos — de justiça social a acessibilidade, de automação criativa a democratização do conhecimento.
Se ainda não testou nenhuma delas, vale a pena experimentar. Em poucos minutos, você pode ter uma experiência real com um produto AI-native — criando, pesquisando, escrevendo ou ilustrando com ajuda da inteligência artificial.
Há uma diferença fundamental entre usar AI para automatizar tarefas — como a TI foi usada no passado — e usá-la para criar produtos verdadeiramente inteligentes, que resolvem problemas com mais eficiência, personalização e escala.
AI tem capacidades únicas. Hoje em dia, só se fala da AI que gera textos, imagens, vídeos, músicas e até aplicativos. Essa popularidade disparou a partir do final de 2022, quando a OpenAI apresentou o ChatGPT. Mas AI vai muito além da geração: ela já é, há bastante tempo, muito boa em classificar, reconhecer e recomendar. E o melhor — todas essas capacidades melhoram com o uso.
Isso permite criar produtos que aprendem, evoluem e entregam mais valor com o tempo — tanto para as clientes quanto para o negócio.
Outro ponto fundamental: soluções baseadas em AI não são determinísticas, em que algo é ou A ou B. Elas são probabilísticas — atribuem graus de confiança a diferentes possibilidades. E essa característica aproxima muito mais os produtos do funcionamento real do mundo, onde quase nada é preto no branco. A grande maioria das situações que enfrentamos é, na prática, probabilística.
Nas empresas AI-native, a pergunta “como vamos resolver esse problema?” já parte do que a tecnologia de AI é capaz de fazer. Da mesma forma que, em tech companies, sempre se começa com as tecnologias disponíveis como ponto de partida para a solução.
É esse tipo de mentalidade que diferencia um uso pontual de AI de uma verdadeira transformação de produto. Não se trata só de produtividade. Trata-se de pensar produto com AI desde o começo.
Ao longo da minha carreira, tive a oportunidade de atuar em empresas com diferentes tipos de DNA. Na Locaweb e na Conta Azul, o produto era a própria tecnologia. Eram empresas digitais — o software era o centro do negócio, e tecnologia, produto e estratégia caminhavam juntos desde o início.
Depois, fui para o Gympass, um caso claro de empresa tradicional nascida digital: um benefício corporativo, com entrega física (acesso a academias), mas que nasceu com a tecnologia como capacidade estratégica e como ponte entre clientes, usuários e parceiros.
Mais recentemente, vivi a experiência oposta — e igualmente transformadora — na Lopes, uma empresa tradicional do setor imobiliário com mais de 85 anos de história. Uma empresa que entendeu que precisava se transformar digitalmente para competir com entrantes como Loft e QuintoAndar, que já nasceram com tecnologia no centro.
Na Lopes, em 2020, dizíamos que estávamos indo além da transformação digital — estávamos promovendo uma transformação baseada em dados. Sem saber, já flertávamos com o conceito de AI-native, antes mesmo do impacto que a OpenAI e a AI generativa trariam no final de 2022.
A empresa tinha uma base muito rica de informações sobre imóveis, que nos permitiu desenvolver algoritmos para avaliação automatizada de propriedades, sistemas de recomendação, soluções de tri-match entre cliente, imóvel e corretor, entre outras iniciativas com potencial de escalar o atendimento e melhorar a experiência das clientes.
Um exemplo: o sistema original de recomendação de imóveis similares era simples, baseado em três variáveis estáticas (tipologia, preço e bairro). Substituímos por um sistema inteligente com dez variáveis estáticas, combinadas com machine learning baseado nos cliques anteriores. Os resultados foram expressivos:
Essa jornada deixou claro como o uso estratégico de dados e AI pode ser diferencial mesmo em setores tradicionais. Foi um exercício de reenquadrar cultura, processos e estratégia. De construir pontes entre negócio e tecnologia. De inserir gestão de produto como peça-chave na definição dos rumos da empresa.
Essas vivências me mostraram na prática como é diferente nascer com tecnologia no centro — e trazer a tecnologia para o centro depois. E agora, com a AI, essa diferença pode ser ainda mais profunda.
A maior parte das empresas atuais não nasceu AI-native. Assim como as empresas tradicionais não nasceram tech-native nem internet-native. Isso não é necessariamente um problema — é uma realidade cujos impactos precisam ser compreendidos e enfrentados.
O desafio, agora, é reconhecer que estamos diante de um novo momento de transformação. Repetir os erros do passado — negar, minimizar, esperar amadurecer, tratar como moda — pode custar caro.
A AI não é só uma nova ferramenta de produtividade. É uma tecnologia capaz de tornar até os produtos mais tradicionais mais inteligentes. Mais úteis para as clientes. E mais eficientes para os negócios.
Algo curioso (e revelador) está acontecendo neste exato momento: muitas empresas que foram símbolo da revolução digital agora se veem pressionadas a correr atrás da nova revolução da AI.
O Google, por exemplo, está embarcando o Gemini diretamente nos resultados de busca, pois começou a ver as pessoas irem buscar suas respostas no ChatGPT. A Amazon incorporou AI generativa no Alexa. O YouTube passou a testar sumários automáticos e criação de conteúdo assistida. O Spotify está integrando assistentes baseados em voz. A Meta lançou múltiplas experiências de geração de imagem e texto no Instagram e no WhatsApp.
Essas empresas são os maiores expoentes do conceito de tech-native — muitas delas também internet-native. Mas agora precisam aprender a se tornar AI-native — ou, ao menos, competir com quem já nasceu assim.
Isso mostra que o jogo mudou. E quem antes ditava o ritmo agora precisa se adaptar.
As empresas que não nasceram AI-native precisam reagir como muitas fizeram na era digital: experimentando, aprendendo rápido e trazendo a AI para o centro do que fazem.
Isso significa ir além de automatizar tarefas internas. Significa explorar como a AI pode transformar o próprio produto. Como pode ajudar a resolver os problemas das clientes de forma melhor, mais rápida ou mais barata. Como pode gerar vantagens competitivas difíceis de copiar.
No fim das contas, a promessa da AI não está só na eficiência operacional. Está em como ela pode dar origem a uma nova geração de produtos — produtos que aprendem, evoluem e resolvem melhor os problemas das clientes.
É um novo ciclo. Quem conseguir se adaptar rápido pode sair na frente. Quem demorar demais corre o risco de ser engolido — de novo.
Aqui estão outros artigos sobre AI que escrevi recentemente:
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