Participei recentemente de um painel com conselheiros e executivos experientes, organizado pela VAB (Virtual Advisory Board), sobre o papel da inteligência artificial na governança. Foi um momento real de aprendizado coletivo, com diferentes perspectivas, inquietações e caminhos possíveis. É natural que a conversa comece pelos temas mais imediatos, como risco, conformidade e eficiência.
Esse debate é importante e mostra que ainda estamos apenas começando a entender o que a IA realmente pode significar para a estratégia.
Quando tratamos da IA apenas como automação ou como um novo conjunto de controles, corremos o risco de reduzir seu potencial à economia de tempo e de custo. Mas IA não é só sobre fazer mais rápido. É sobre como pensamos, decidimos e criamos vantagem competitiva.
Hoje, quando se fala de IA nos conselhos, o foco quase sempre é produtividade, automação e corte de custos. É um olhar legítimo, mas incompleto. O verdadeiro poder da IA está em tornar produtos e decisões mais inteligentes, não apenas mais eficientes. Conselhos que limitam o tema à eficiência podem estar deixando passar a maior transformação estratégica desde a internet.
E isso já aconteceu antes. No início da adoção da internet pelas empresas, quem enxergou apenas automação perdeu o salto estratégico que veio depois.
O Nubank é um exemplo claro dessa diferença de mentalidade. É um banco que nasceu digital e colocou tecnologia, produto e experiência do cliente no centro da estratégia.
Em setembro de 2025, seu valor de mercado chegou a US$ 78,1 bilhões, tornando-o a segunda empresa mais valiosa do Brasil, atrás da Petrobras, e a terceira da América Latina, atrás de Mercado Livre e da própria Petrobras.
O modelo de negócio é o mesmo dos bancos tradicionais: guardar e emprestar dinheiro. Mas o Nubank usou tecnologia para fazer isso muito melhor. Sem agências físicas, com uma experiência simples para o cliente e uma operação mais eficiente. Tecnologia e internet estavam no design do negócio desde o começo.
Engana-se quem acha que essa miopia só acontece com empresas grandes.
Recentemente, em uma das startups em que sou conselheiro, a founder apresentou ao conselho uma proposta empolgada: aplicar IA nas tarefas do dia a dia de todas as áreas para aumentar a produtividade.
A ideia fazia sentido, mas era limitada. Ela havia esquecido que a IA também poderia e deveria ser aplicada ao produto. Esse é um erro comum: pensar em IA apenas como uma ferramenta de eficiência operacional, e não como uma alavanca estratégica de diferenciação.
E foi exatamente isso que discutimos: o maior impacto da IA não está só em aumentar a produtividade das tarefas, mas também na forma como ela pode tornar o produto mais inteligente e criar novas vantagens competitivas.
Na Lopes, por exemplo, usamos algoritmos de similaridade com aprendizado de máquina para gerar mais leads e melhorar as recomendações. Em 2020, bem antes do boom do ChatGPT e da IA generativa, já falávamos sobre AI Transformation, algo que encantava todos os nossos investidores. IA não é só ChatGPT; está em recomendações, previsões, personalizações e decisões baseadas em dados.
A pergunta que o conselho deveria fazer é simples: como a IA pode tornar nossos produtos mais inteligentes e nossos clientes mais únicos?
A IA no produto não é sobre eficiência. É sobre diferenciação. É estratégia de crescimento.
Outro erro comum é tratar a IA apenas pelo ângulo do risco e da conformidade. Sim, os riscos existem, principalmente com o uso indevido de dados e de ferramentas abertas.
Pense na conselheira que recebe o pré-reading e o insere em uma ferramenta de IA generativa para análise. Isso representa um risco real de compliance, já que dados sigilosos da empresa podem ser utilizados para treinar os modelos dessas IAs.
Mas governança e inovação não são opostos.
O papel do conselho é garantir segurança sem sufocar o aprendizado. Isso passa por definir diretrizes claras para o uso de dados e ferramentas, evitando versões gratuitas com informações corporativas e priorizando soluções empresariais, como o ChatGPT Enterprise ou o Gemini no Workspace. Em alguns casos, faz sentido até desenvolver modelos internos, como fizemos na Lopes.
A provocação que o conselho deve fazer é: estamos nos protegendo dos riscos ou das oportunidades?
Bloquear o uso da IA é inútil. As pessoas vão usar mesmo assim. A função do conselho é criar diretrizes claras para serem adotadas com responsabilidade e liberar a inovação com segurança.
A IA exige um novo tipo de conselheira. Não é sobre virar técnico, mas sobre ter letramento em IA, entender o suficiente para fazer as perguntas certas, avaliar as implicações éticas e compreender como a tecnologia muda o processo de decisão.
Conceitos como determinístico e probabilístico, IA analítica e IA generativa, interface conversacional e interface gráfica, ou AI-first e AI-native ajudam a enxergar o essencial: a IA muda a lógica das decisões.
Em breve, veremos comitês de IA e conselheiras com background tecnológico se tornarem comuns. Assim como o Nubank nasceu digital e superou bancos centenários, as empresas que nascerem AI-native vão ultrapassar as atuais.
O papel do conselho é garantir que a empresa não só use IA, mas também pense com IA.
A IA não é apenas uma ferramenta — é um novo modo de pensar. Conselhos que entenderem isso primeiro vão liderar a próxima transformação empresarial.
O desafio agora é aprender o suficiente para perguntar melhor e provocar a empresa a ir além da eficiência, rumo à criação de novas capacidades e novas formas de competir.
Algumas perguntas que podem abrir conversas importantes em reuniões de conselho:
Porque, no fim, governar com inteligência é o novo diferencial competitivo.
Ajudo empresas e lideranças (CPOs, heads de produto, CTOs, CEOs, tech founders e heads de transformação digital) a conectar negócios e tecnologia por meio de treinamentos e consultoria focados em gestão de produtos e transformação digital.
Na Gyaco, acreditamos no poder das conversas para promover reflexão e aprendizado. Por isso, temos três podcasts que exploram o universo de gestão de produtos por ângulos diferentes:
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